quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

LUIS CARLOS PRESTES, O ALUNO NOTA 10!!!

Reunidos à porta da sala do professor José Pio Borges de Castro, os “bichos” estavam agitados como nunca. Assim eram chamados os alunos novatos na Escola Militar de Realengo, no Rio de Janeiro, que naquele dia de maio de 1916 conheciam suas primeiras notas, depois de dois meses de aulas. E as de Pio Borges, primeiro-tenente responsável pela disciplina Geometria Analítica, eram as mais aguardadas.

O veredicto daquele professor era considerado pelos alunos o parâmetro para saberem quem seria o líder da nova turma. Conhecido como “O Justiceiro”, o mestre impunha respeito por suas avaliações rigorosíssimas, porém imparciais. Cearense, José Pio Borges de Castro também era reconhecido por ter solucionado o problema das ressacas marítimas no Rio de Janeiro ao propor um projeto de engenharia para a construção de um cais cicloidal, ou seja, com formato circular.

Quando se soube que chegara a hora dos resultados da primeira sabatina de Geometria Analítica, realizada em abril, os alojamentos da Escola Militar carioca ficaram desertos. Veteranos e “bichos” mantinham um silêncio sepulcral enquanto Pio Borges anunciava: “Fulano, nota 0”, “Sicrano, nota 2”, “Beltrano, nota 1”. Parecia que o professor não conhecia outros valores. Continuava, impassível, recitando seu rosário de zeros, uns, no máximo dois. Até que, em uníssono, a turma de alunos solfejou um enorme “Oh!”. Pio Borges acabara de ler uma nota espantosa para os seus padrões: 9! Todos os olhares se interrogaram, à procura do inquestionável “primeiro aluno” da turma. Baixinho, franzino, um tanto feio, o autor da façanha permaneceu sentado, parecendo alheio ao seu feito. Era Luís Carlos Prestes, aos 18 anos.

Nos meses seguintes, as notas do aluno novato na temida disciplina sofreram uma ligeira alteração: nos exames de maio, junho, julho, agosto, setembro e outubro, suas médias em Geometria Analítica, e também em Cálculo Transcendente, disciplina  ministrada pelo mesmo professor, passaram de 9 para 10. O professor “Justiceiro”, no entanto, não se deu por satisfeito. Talvez para testar até onde iria a excelência do desempenho de Prestes, propôs em novembro, no último exame do ano, uma questão de difícil resolução. Para enfrentá-la, era preciso conhecer cálculos que só seriam aprendidos no 3º ano da Escola, ou seja, no curso especial de Engenharia. O problema era o seguinte: “Encontrar o volume do sólido formado pela interseção de dois cilindros circulares retos e de raios iguais que se encontram em ângulo reto”.

Diante da questão, a maioria dos alunos não teve alternativa a não ser entregar a prova em branco. E todos ficaram temerosos por Prestes. Perderia ele a sua condição de destaque justo na última sabatina do ano?
Chega o dia do resultado da avaliação. O professor Pio Borges, após anunciar uma longa relação de zeros, registra a esperada nota de Prestes: 10! Só ele havia resolvido a questão proposta. A vibração tomou conta da Escola Militar e aumentou o apreço por aquele concludente do 1º ano. A ponto de alguns alunos e professores reivindicarem, junto a Pio Borges, um ajuste no 9 dado a Prestes por ocasião da primeira prova de Geometria Analítica. Estaria disposto a mudá-lo para 10? Alegando razões de consciência, o professor não concordou, e, assim, o melhor dos “bichos” de 1916 fechou o 1º ano com média 9,97 em Geometria Analítica.

Outras três disciplinas compunham o currículo do ano inicial. Em Geometria Descritiva, a cargo do capitão Manuel Bezerra de Gouveia, Prestes obteve nota 10 da primeira à última prova, sendo aprovado com distinção. Mas, como a história é repleta de pequenas ironias, havia uma disciplina na qual o brilhante aluno encontrava grande dificuldade. O futuro comandante e grande estrategista, que entre 1925 e 1927 lideraria uma Coluna revolucionária com mais de 1.500 homens, marchando 25 mil quilômetros durante dois anos, durante o período na Escola em Realengo era um fiasco em... Arte Militar!

Por mais que se dedicasse a essa disciplina – ministrada pelo capitão Rodolfo Vilanova Machado (futuro prefeito de Niterói) –, as notas de Prestes oscilavam entre 5 e 7, o que fez com que ele chegasse ao fim do ano com média 5,50. Com a proximidade dos exames finais, todos os alunos passavam parte das noites em claro estudando Matemática, Geometria Analítica e Cálculo Transcendente. Os alunos pobres se organizavam em grupos de seis para comprar os livros adotados nas respectivas disciplinas. Para conseguirem estudar na época dos exames finais, as noites de caserna eram divididas em períodos de duas horas a partir das 22 horas, quando as duplas de alunos se revezavam religiosamente, revisando os chamados “pontos” abordados em sala de aula. Prestes, no seu horário, preparava-se para o exame oral em Arte Militar, que seria decisivo para sua classificação final.

Mais uma vez, sua situação gerou grande expectativa entre os colegas. Após a inquirição, enquanto os examinadores se reuniam secretamente, a turma toda se concentrou na porta da sala. Não era apenas a sorte de Prestes que estava em jogo, mas o orgulho da Escola Militar. Alguns colegas arriscavam palpites. Apareceu então o bedel, que aproveitava aqueles momentos de maior poder, quando anunciava os resultados dos exames finais, para tripudiar sobre os alunos. Começava a leitura das notas alcançadas, economizando palavras, gaguejando, lendo lentamente os resultados. De uma lista de apenas doze nomes, lia e relia os primeiros, maltratando e tornando aquela espera interminável. Por fim, chegou ao resultado que todos esperavam: “Luís Carlos Prestes” (seguido de uma longa pausa), “aprovado com nota 6,5”. Mais uma vez, ele não repetira o desempenho impressionante das outras disciplinas, mas o que importava era que estava salvo. Prestes foi carregado nos ombros dos colegas de turma pelos corredores da Escola Militar, esboçando um sorriso tímido, mas que se destacava naquele corpo raquítico.

Em defesa do futuro “Cavaleiro da Esperança”, vale registrar que a ênfase da Escola Militar até 1919 (ano em que ele se formou) era essencialmente acadêmica. Embora a instituição tivesse sido criada, seis anos antes, para formar oficiais e suprir os quadros permanentes do corpo de tropa do Exército em suas diferentes Armas (Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Aviação). Naqueles primeiros tempos o currículo era mais voltado para Cálculo, Física e Descritiva do que para o ensino de estratégias militares mais sistemáticas. Essa distorção começou a mudar justo quando a turma de Prestes estava para deixar a Escola. A pedido do general Alberto Cardoso de Aguiar, ministro da Guerra do presidente interino Delfim Moreira (1918-1919), veio ao Brasil uma Missão Militar Francesa, chefiada pelo general Maurice Gamelin, com o objetivo de aperfeiçoar a instrução militar no Exército brasileiro.

Luís Carlos Prestes formou-se na Arma de Engenharia, chegou a trabalhar como engenheiro ferroviário, mas, em sua longa trajetória, precisaria cada vez menos da Geometria Analítica, cada vez mais da Arte Militar. O aluno nota 10 foi deixado de lado. O aluno nota 5 transformou-se em um dos mais notórios revolucionários da História do Brasil. Vivendo e aprendendo...


*Texto de Márcio de Souza Porto: autor da dissertação Dom Delgado na Igreja de seu tempo (1963-1967). (UFC, 2007).




Saiba Mais - Bibliografia:

AMADO, Jorge. O Cavaleiro da Esperança. A Vida de Luís Carlos Prestes. Rio de Janeiro: Record, 2002.

CAMARGO, Aspásia, GÓES, Walder de. (orgs.). Meio século de combate: diálogo com Cordeiro de Farias. Coleção Brasil Século XX . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

MEIRELLES, Domingos. As Noites das Grandes Fogueiras. Rio de Janeiro: Record, 2007.

PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes: uma epopéia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991.

RODRIGUES, J. Luiz Carlos Prestes – sua passagem pela Escola Militar. Fortaleza: 1927.


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