A vida do mais amado e
controvertido mito religioso do sertão que, para muitos, foi um santo; para
outros, um “coronel de batina”
Por José Paulo Borges
Tudo começou com um
sonho de um jovem pároco sertanejo de menos de 30 anos de idade, estatura
pequena, pele branca, cabelos claros e inacreditáveis olhos azuis. No sonho, o
próprio Jesus Cristo, rodeado pelos 12 apóstolos, surge ao padre e conta sua
mágoa com a humanidade. Depois, aponta para um punhado de nordestinos
maltrapilhos e descalços, provavelmente fugidos da seca, e ordena ao padre:
“Quanto a ti, toma conta deles!” Impressionado, o padre decide se fixar
definitivamente em Joaseiro (grafia utilizada à época), no sertão do Cariri,
interior do Ceará – na época, um arraial miserável com 40 ou 60 casas de taipa
cobertas de palha, habitado por uns “cabras” desordeiros e desregrados. Era
1872. Com o tempo, o trabalho do padre junto àquele povo foi dando resultado,
posto que a todos se dedicava. E, aos poucos, Joaseiro foi se transformando num
povoado devoto e próspero.
Há quem acredite que
Cícero Romão Batista, o padre do sonho, até hoje zela não só por Juazeiro do
Norte, situada a cerca de 530 quilômetros de Fortaleza, com pouco mais de 250
mil habitantes – cidade que ele fundou –, como por Crato (121 mil habitantes)
–, que o viu nascer em 1844. E uma imagem sua, de 27 metros de altura, se
impõe, fincada no alto da serra do Catolé, na parte denominada de Horto pela
população desde o final do século XIX, em alusão ao Horto das Oliveiras, local
onde Jesus Cristo teria passado suas últimas horas antes de ser preso e
condenado à morte na cruz. Era no Horto que Cícero costumava descansar.
A vida do “Padim Ciço”
dos romeiros e fiéis, mais amado e controvertido mito religioso do sertão –
santo para uns, “coronel de batina” para outros –, pode ser dividida em dois
atos distintos. No primeiro, as luzes se dirigem para o Cícero religioso e
mostram cenas como as do pároco amargurado com o sofrimento de seu rebanho com
a seca, o “milagre” da transformação em sangue da hóstia recebida pela beata
Maria de Araújo durante a comunhão, os conflitos com o bispado cearense
desencadeados pelo fenômeno, a proibição de rezar missa e, por fim, sua
aclamação ainda em vida como santo pelos sertanejos.
No segundo ato, as
luzes voltam-se para o Cícero político, em uma carreira que abraçou após ser
proibido de ordenar. Em cena estão o personagem que foi prefeito de Juazeiro
por quase 20 anos, sua eleição a vice-presidente (o equivalente a
vice-governador) do estado do Ceará, o apadrinhamento a um exército de jagunços
numa revolução armada que levou à derrubada do governo local e a aproximação
com Lampião, de quem buscava apoio para combater a Coluna Prestes. Como se não
bastasse, já perto do fim da vida, Cícero foi eleito deputado federal e ainda
encontrou tempo para conceber um decálogo com preceitos ecológicos (leia o
quadro) que, já naquela época, buscavam preservar a caatinga.
O religioso
“O nome do padre Cícero
/ ninguém jamais manchará, / porque a fé dos romeiros / viva permanecerá, /
pois nos corações dos seus / foi ele um santo de Deus / é e pra sempre será.”
Tema de incontáveis folhetos de cordel espalhados pelas feiras sertão afora,
Cícero Romão Batista provavelmente passaria a vida inteira como mais um obscuro
e anônimo pároco de aldeia. Afinal, nada de extraordinário acontecera a ele
desde que chegara ao povoado. Nada, até aquela madrugada de sexta-feira, 6 de
março de 1889. Durante a comunhão, bem cedo na madrugada, após uma noite de
vigília e orações com outros fiéis na capela de Nossa Senhora das Dores, ao
receber a hóstia pelas mãos de padre Cícero, a beata Maria de Araújo sentiu um
gosto de sangue. Só aí notou que metade da hóstia consagrada (a outra ela havia
engolido) sangrara ao contato com sua boca. Cícero guardou no sacrário o pano
manchado de sangue entregue pela beata, e ordenou a ela que se mantivesse em
silêncio.
O fenômeno se repetiu
várias vezes na Quaresma até o dia em que a Igreja comemora a Ascensão de
Cristo. Mesmo assim, Cícero manteve segredo, que durou até o dia em que
monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro, figura de grande prestígio, chamou o
povo do Crato para uma peregrinação ao povoado vizinho de Joaseiro. Na capela,
diante de 3 mil atônitos fiéis, mostrou o pano dizendo que o tecido estava
impregnado com o sangue de Cristo. Médicos e autoridades foram checar o
fenômeno e não encontraram nenhuma explicação natural. Joaseiro rapidamente se
tornou um centro de romaria e devoção. De todos os lados, vinham pessoas para
ver a beata e adorar o pano manchado de sangue.
Descontentes com a
repercussão dos acontecimentos, as autoridades eclesiásticas do Ceará acusaram
Cícero de heresia, proibiram o culto ao pano ensanguentado e impuseram uma
retratação ao padre. O pároco viajou então a Roma, onde teve uma audiência com
o Papa Leão XII. Absolvido, voltou com a permissão de continuar celebrando
missa. Porém, dom Joaquim Vieira, bispo do Ceará, determinou que, enquanto não
viesse de Roma o decreto de reabilitação, o sacerdote não poderia celebrar
missa nem ministrar os sacramentos ou fazer sermões. De nada adiantou a
proibição. Naqueles confins dominados por latifundiários e cangaceiros, onde
vicejava uma religiosidade espontânea e mística, o mito do “Santo de Joaseiro”
já estava consolidado.
Romeiros famintos e
sedentos debandavam a Joaseiro vindos de todos os cantos do sertão, e Cícero
atendia a todos. Além de orações e bênçãos, o padre encontrava soluções para tudo,
de questões espirituais a atividades econômicas, de doenças a desavenças. “Em
cada casa, um oratório; em cada quintal, uma oficina”, pregava com insistência.
Dessa maneira conquistou o respeito daquela gente, que lhe atribuía qualidades
de santo e profeta. Paralelamente, agindo com muita austeridade, cuidou de
moralizar os costumes, acabando com os excessos de bebida e com a prostituição.
Agora, Cícero não era
apenas padre, mas “padrinho” de toda aquela gente que chegava não apenas para
pedir ajuda e que, mesmo sendo pobre, sempre trazia um regalo, uma esmola e um
pouco de dinheiro, que deixavam sob a guarda do “Padim”. Alguns ofereciam
animais, joias e até propriedades. Tudo para morar na terra santa de Joaseiro,
sob a proteção do padre santo. Com um pouco de um e de outro, trazido pelos
romeiros, Cícero constituiu um patrimônio respeitável e tornou-se o maior proprietário
de terras da região.
Para alguns, já era um
“coronel”, talvez o mais poderoso de todo o Cariri. Mas, para os romeiros,
jamais deixou de ser o bom e venerável Padim Ciço, que sempre os protegia em
suas necessidades, comprando terras e arrendando-as a eles, romeiros, para que
tocassem suas vidas. E, assim, as coisas fluíam em Joaseiro, sem milagres e sem
mistérios.
O político
Padre Cícero passeia em carro aberto no centro de Juazeiro do Norte - foto Thiago Gaspar |
Proibido de exercer as
funções eclesiásticas, estimulado pelo seu prestígio ingressou na vida
política. Com a elevação do povoado a município, foi nomeado pelo governador do
Ceará, Nogueira Acioli, primeiro prefeito de Juazeiro. Como prefeito,
estimulou a agricultura de subsistência, levou para o campo modernos
descaroçadores de algodão e conseguiu que os trilhos da Rede de Viação Cearense
chegassem ao Cariri. “Entrei na política a contragosto, porque não teve jeito”,
disse certa vez.Segundo o que corria à
época, padre Cícero era oficialmente o prefeito, porém, quem de fato administrava Juazeiro
era o doutor Floro Bartolomeu da Costa, espécie de eminência política do
religioso. Em 1914, a Assembleia Legislativa do Ceará reuniu-se e, por maioria,
reconheceu padre Cícero como 1º vice-governador do estado. Também foi eleito deputado
federal. Ele não assumiu esses cargos “para não abandonar os fiéis”.
Em 18 de fevereiro de
1931, o jornalista Paulo Sarasate, do jornal O povo, de Fortaleza, entrevistou
padre Cícero, na época com 87 anos, mas relativamente forte e falando com
fluência. Ardoroso inimigo de concessões estrangeiras, declarou: “Em vez de se salvar
o País com impostos e empréstimos, os dirigentes da pátria devem criar um novo
ministério, destinado especialmente a desenvolver as nossas riquezas naturais,
as grandes riquezas que Deus nos deu. Faça-se, pois, o Ministério das Minas e
Florestas. É assim que se deve crescer, e não vendendo o país aos estrangeiros.
Eles comem as bananas e nos atiram as cascas.” E continuou: “E, se for
possível, criemos também o Ministério de Culto, Ensino, Ciência, Higiene e Bons
Costumes, para melhor realizar a reconstrução moral do país.”
Padre Cícero foi a
figura central de um movimento violento que fez muitas mortes, ocorrido no
Ceará entre 1913 e 1914, chamado “Sedição de Juazeiro”. Com o pretexto de
acabar com o fanatismo no sertão do Cariri, o então presidente do estado,
Franco Rabelo, entrou em rota de colisão com o padre, exonerando-o do cargo de
prefeito. Tropas enviadas por Rabelo ao Crato tentaram invadir Juazeiro do
Norte, em combates que duraram um mês. Mas Juazeiro resistiu com uma força
composta por beatos e cangaceiros fiéis a Cícero, comandadas por Floro
Bartolomeu. O “Batalhão Patriótico”, como ficou conhecido, chegou a invadir
Fortaleza em março de 1914, saqueando cidades pelo caminho. Naquele mês, o
governo federal decretou intervenção no estado e destituiu o governador Rabelo,
acabando com guerra.
Críticos mais
contundentes afirmam que padre Cícero foi padrinho, amigo e protetor de
Lampião. Tais vozes garantem que, em 1926, ele providenciou que o cangaceiro
fosse nomeado capitão pelas autoridades federais, com o objetivo de combater a
Coluna Prestes. Os cangaceiros, sabe-se, tinham forte religiosidade.
Coincidência ou não, seu declínio político veio com a decadência do cangaço.
Romeiros, ontem e hoje
Por causa das dores
provocadas pela artrose em um dos joelhos, Terezinha de Jesus Alencar, de 74
anos, não fez em setembro, como tem acontecido nos últimos 20 anos, pelo menos,
a caminhada a pé da Matriz de Nossa Senhora das Dores, no centro de Juazeiro do
Norte, até o alto do morro do Horto – onde está a imagem de padre Cícero –
juntamente com um grupo de romeiros de Petrolina, cidade do sertão pernambucano
onde mora. “Fui de carro, mas mesmo assim fiquei feliz por participar de mais
uma romaria”, conta. “Na verdade, já estou me preparando para o dia em que vou
ter que ficar em casa, longe das romarias. Mas isso não tem importância, pois
romaria a Juazeiro é uma coisa que está dentro do coração da gente. Ninguém
tira essa alegria.”
Terezinha de Jesus é
uma dentre os 2,5 milhões de pessoas que todos os anos chegam a Juazeiro em
romarias. Já vão longe os tempos em que chegavam a pé ou no lombo de jumento.
Muitos dos romeiros atualmente viajam em ônibus com ar-condicionado, ou chegam
de avião. Neste caso, antes do desembarque no aeroporto da cidade, se encantam,
olhando pela janela, com a estátua de padre Cícero reverberando ao Sol, no alto
da Colina do Horto. Já em terra firme – embora predominem pousadas com preços
variados –, podem optar por hotéis dotados de confortos inimagináveis pelos
primeiros romeiros.
Naquela época, para
serem recebidos por padre Cícero, os romeiros tinham de passar pelo crivo
implacável da beata Mocinha. A maioria esperava de joelhos, rezando, a hora de
ser chamado pela beata. Sem a interferência de Mocinha, que tudo podia e tudo mandava
sob o teto que abrigava padre Cícero, nada se conseguia. Um ou outro romeiro
protestava contra a demora, mas todos não viam a hora de beijar as mãos
milagrosas, para eles, do “meu padrinho”.
Hoje, entre uma e outra
missa, os romeiros podem passear pelo metrô de superfície da cidade,
deliciar-se em um restaurante com um prato de macaxeira cozida na manteiga ou
assistir gratuitamente, no Centro Cultural Banco do Nordeste, a montagens
teatrais ousadas, como “Navalha na carne” do autor “maldito” Plínio Marcos.
Fonte: revistaforum.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário