Se olharmos no dicionário,
veremos que o natal é uma festa cristã realizada no dia 25 de dezembro, cujo
objetivo é comemorar o nascimento de Jesus Cristo. Logo, o significado do natal
é puramente religioso, cristão. No entanto, uma análise histórica e crítica nos
revela que as coisas não são bem assim. O natal sofreu mudanças de significado
no decorrer da história da humanidade e é isto que iremos colocar no presente
texto.
O natal foi, em sua
origem, uma festa pagã. Como sabemos, o paganismo é uma doutrina religiosa
politeísta que era predominante antes da era cristã. As festas pagãs de
Saturnália (17 a 24 de dezembro) e Brumália (25 de dezembro) faziam parte da
cultura popular na Roma Antiga (e na região da Pérsia) e foram substituídas
pelo natal cristão. Na Brumália, o nascimento de Júpiter (também chamado
Mitra), o Deus-Sol, era comemorado no dia 25 de dezembro e se chamava Mitraica.
Apesar disto, a festa em si não tinha caráter religioso e sim “mundano”.
A maioria dos símbolos do
natal também possui origem pagã. A origem da árvore de natal possui duas
hipóteses: para uns, ela foi introduzida como símbolo da festa por Martinho
Lutero, um dos principais arquitetos da reforma protestante (Século 16); para outros,
sua origem se encontra na mitologia babilônica, segunda a qual Ninrode (filho
de Cam, neto de Noé), depois de morto, gostava de receber presentes debaixo de
uma árvore, no dia do seu aniversário, dia 25 de dezembro. Se a hipótese
verdadeira for a segunda, a árvore de natal também teria origem pagã.
As velas constituíam uma
tradição pagã, pois eram acesas durante o crepúsculo para homenagear o Deus
romano Júpiter. A guirlanda, coroa verde com fitas e bolas coloridas, fazia
parte dos costumes populares para decorar edifícios.
O Papai Noel tem sua
origem na lenda de Nicolau, Bispo de Mira, Século 5. A lenda diz que ele
presenteava, em segredo, três crianças de uma família pobre, todos os anos, no
dia 06 de dezembro. No entanto, a mitologia babilônica de Ninrode, citada
anteriormente, já colocava a oferta de presentes, mas que era feita para a
“divindade” e não para crianças pobres.
Outras versões do Papai Noel existiram,
tal como a expressa no conto popular russo Babushka. O conto relata a história
de Babuskha, uma velhinha que foi convidada pelos três reis magos para ir à
Belém ver o Menino Jesus que havia acabado de nascer e que recusou o convite
devido ao frio intenso que fazia naquela noite. No dia seguinte, ela juntou
presentes para o Menino Jesus, mas como não sabia o caminho e os três anciãos
já haviam partido, partiu procurando-o sem nunca encontrá-lo, mas deixando para
todos os meninos que encontrava um brinquedo como presente de natal.
O Papai
Noel tem diversos nomes (e formas) em países diferentes. Na Alemanha, é Kriss
Kringle (“criança de cristo”); na França, é Pere Noel; Nos Estados Unidos e
Canadá é Santa Claus (devido à origem lingüística holandesa, derivada de São
Nicolau); na Inglaterra é Father Christmas; na Costa Rica, Colômbia, algumas partes
do México, é El Niño Jesus; em Porto Rico ele é substituído pelos Três Reis
Magos (Melchior, Baltazar e Gaspar); na Suécia é Jultomten; na Holanda,
Kerstman; na Finlândia, Joulupukki; na Rússia, é Grandfather Frost ou Babushka;
na Itália é Befana ou Babbo Natal; em Portugal é Papai Natal (Noel é o mesmo
que natal); no Japão é Jizo e na Dinamarca é Juliman. O Papai Noel recebe nomes
diferentes em países diferentes, mas em alguns recebe “formas” e origens
diferentes, tal como em Porto Rico (três reis magos), na Rússia (Babushka) e na
Itália (Befana, uma bruxa que desce pela chaminé e entrega presentes).
A questão do presente é
mais complexa. Na verdade, o natal se apresenta, na atualidade, como uma troca
de presentes entre adultos e no ato de presentear crianças. No mito babilônico
há oferta de presente para a divindade; enquanto que na lenda de São Nicolau e
Babushka, há oferta de presentes para crianças. Mas sua origem parece estar
ligada à cultura popular pagã, pois a troca de presentes era um costume tanto
na Mitraica quanto na Saturnália.
De tudo isto que vimos,
podemos dizer que o natal tem sua origem numa festa pagã. Esta festa pagã se
converteu em festa cristã a partir do século 4, quando Constantino, Imperador
Romano convertido ao cristianismo, transformou o dia do Deus-Sol em dia do
nascimento de Cristo (cuja data exata é desconhecida). Tal como coloca o
historiador das religiões Mircea Eliade, “desde o princípio, o cristianismo
sofreu influências múltiplas e contraditórias, sobretudo as do gnosticismo, do
judaísmo e do ‘paganismo’”. Ele acrescenta que os padres da Igreja
“cristianizaram os símbolos, ritos e os mitos asiáticos e mediterrânicos
ligando-os a uma história santa” .
A Igreja Romana introduziu
o natal como festa cristã, pois a hegemonia do cristianismo surgiu num terreno
dominado por uma cultura popular, de forte influência pagã, que ela não podia
simplesmente descartar, já que isto provocaria resistência à doutrina cristã.
Desta forma, a Igreja Romana buscou assimilar a cultura popular e cristianizá-la,
fornecendo, assim, um significado cristão a uma festa pagã, mas, ao mesmo
tempo, mantinha grande parte de suas características e assim fazia uma
concessão necessária para facilitar sua aceitação.
Desta forma, o significado
original do natal era mundano, de caráter pagão, ou seja, orientado para os
prazeres da alimentação farta, alegria, etc. A Igreja Romana forneceu uma
ressignificação do natal, dando-lhe um significado religioso. Este significado
predominou durante toda a Idade Média, período em que a religião cristã dominou
absoluta no mundo feudal ocidental, embora tenham sobrevivido alguns resquícios
da influência pagã na cultura popular.
No entanto, um novo
significado passaria a ser atribuído ao natal na Idade Moderna, ou seja, na
sociedade capitalista. O significado religioso permanece, mas é, em alguns
aspectos, relegado a segundo plano, e, em outros, é assimilado pelo novo
significado que adquire.
Qual é este novo
significado do natal? É o significado mercantil. O natal se torna uma grande
festa consumista, amplamente explorada pela publicidade. O significado
mercantil assimila o significado religioso e transforma o sentido dos símbolos
natalinos. O fundamental passa a ser o presente e a figura preponderante passa
a ser o Papai Noel, um velhinho que distribui presentes para todas as crianças
(e não apenas para as pobres, como originalmente) sem nenhuma justificação.
Este personagem vem apenas para apresentar como natural e universal algo que é
constituído histórica e socialmente e que serve a interesses “ocultos”.
A troca de presentes se
torna generalizada e tem atrás de si um conjunto de interesses: oferece-se um
presente em troca de outro presente ou então de um favor, ou, ainda, de algo
que revela um interesse oculto. Uma pessoa pode dar um presente para outra
visando receber outro presente em troca e tal troca pode representar uma
posição social ou status (o valor financeiro do presente varia com a posição do
indivíduo na hierarquia social). Um presente pode ser oferecido a um subalterno
esperando que ele retribua não com outro presente, mas sim com gratidão,
trabalho, dedicação (é o caso, por exemplo, das empresas que fornecem “cestas
de natal” aos funcionários).
O presente pode ser
oferecido pelo subalterno ao seu superior, esperando, em troca, um presente
melhor (devido suas “posses”), benevolência ou qualquer outra vantagem (devido
seu “poder”). O bajulador é o principal distribuidor de presentes.
Por fim, o presente pode
ser expressão de afetividade: presenteia-se a quem se gosta e, se ele for um
“igual” (adulto), espera-se que ele retribua sob a mesma forma, e, se for uma
criança, espera-se a retribuição em forma de afetividade ou gratidão. O
problema aparece, neste último caso, devido ao fato de que o processo de
mercantilização das relações sociais cria em muitas pessoas a ideia de que o
presente é equivalente ao amor e não apenas uma forma, entre inúmeras outras,
sob a qual ele se manifesta. Realiza-se, assim, uma inversão entre o símbolo
(presente) e o simbolizado (amor), no qual a primazia passa a pertencer ao
primeiro em detrimento do segundo. Desta forma, não receber um presente aparece
como o mesmo que não ser amado. Cria-se, assim, o fetichismo do presente.
As crianças são treinadas
para viver nesse mundo mercantil desde cedo: em uma idade em que não possuem
recursos financeiros para dar presente, um adulto lhe fornece dinheiro para
comprá-lo e entregá-lo, principalmente no Dias das Mães e dos Pais, mas também
no natal (há casos em que os pais dão dinheiro para os filhos comprar presentes
para eles mesmos ou para o outro – o pai para a mãe ou vice-versa…). A
publicidade, os costumes, cria na criança uma expectativa de ganhar presente.
No natal, para o imaginário infantil, é um dia para se ganhar presente.
O processo de troca de presentes
na sociedade capitalista existe durante o ano inteiro (aniversário, dia da
criança, dias dos namorados, dia dos pais, dia das mães, etc.) mas se
intensifica no natal. No dia do aniversário, apenas o aniversariante ganha
presente; no dia das crianças, apenas as crianças e assim por diante. No natal,
a troca de presentes (mercadorias) se torna generalizada.
Os meios de comunicação e
a publicidade se encarregam de inculcar nas pessoas a necessidade de receber e
dar presentes. O desejo de receber presente tem sua fonte na ideia transmitida
pela publicidade e pelos meios de comunicação de que ele é um equivalente do
amor ou então devido a interesses de aquisição de bens e vantagens. O desejo de
dar presentes é produto tanto da publicidade quanto da pressão social (aquele
que não dá presente não ama…) que, caso não seja efetivado, produz remorso
(sentimento de culpa) no indivíduo.
Assim, o capitalismo
manipula sentimentos e produz valores visando aumentar o mercado consumidor.
Todos sabem que no fim de ano, devido ao natal e ao ano novo, há um aquecimento
nas vendas e no processo de produção em alguns setores, nos quais alguns
setores do comércio e indústria são extremamente beneficiados (indústria e
lojas de brinquedos, por exemplo). Outros costumes e desejos são fabricados,
como a “ceia de natal”, decoração, determinados alimentos, etc. Numa sociedade
onde houve a “mercantilização de tudo” , isto tudo se torna mercadoria
(presente, alimento, decoração, roupa, etc.) e se tornam necessidades
fabricadas pelo capitalismo visando a reprodução ampliada do mercado
consumidor. Isto recebe incentivo através do 13o salário e dos empregos
temporários da época. Resta, para aqueles que não possuem dinheiro para
realizar o ato fundamental do natal atual – comprar –, a insatisfação
manifestada sob as mais variadas formas (tristeza, conflitos familiares, etc.).
O natal também possui um
significado de produzir uma pseudestesia coletiva de alegria. O clima de
festividade, mesclado com o consumismo e mensagens religiosas de harmonia e
paz, provoca uma falsa sensação de alegria – para aqueles que se inserem no
mercado consumidor – que logo se dissipa e é substituído pela dura realidade da
vida cotidiana, com todos os seus conflitos e dilemas.
Desta forma, o natal ganha
um significado predominantemente mercantil na sociedade contemporânea e os
apelos para a recuperação de seu sentido religioso só possuem ecos em círculos
restritos, nos quais a religiosidade ainda é importante. Assim, o natal revela
ser aquilo que Marx afirmou ser a religião, pois ele revela ser a expressão e,
ao mesmo tempo, a “dignidade espiritualista”, a “sanção moral”, o “complemento
solene”, o “consolo” e a “justificação” deste mundo mercantil e coisificado. A
superação da pseudestesia coletiva de alegria que é o natal, a falsa alegria,
deve, pois, ser substituída pela verdadeira alegria, que vai muito além da
coleção de mercadorias e presentes ou de apelos hipócritas a uma religiosidade
silenciada pelo reino da mercadoria. O natal é expressão deste mundo e a superação
deste é o meio necessário para a superação da pseudestesia natalina. Desta
maneira, as flores imaginárias que enfeitam nossa prisão e nos consolam para
continuar nela, uma vez descobertas, deverão ser arrancadas para que no lugar
delas possam brotar flores verdadeiras, pois somente assim a alegria imaginária
será substituída pela alegria real.
Artigo publicado no livro:
VIANA, Nildo (org.). Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano. Goiânia, Edições
Germinal, 2002.
Imagens: Google imagens
Vídeos: youtube
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