Historiadores
questionam a biografia do líder negro e mostram como o seu perfil mudou em
quatro séculos
Ivan Claudio
Zumbi, o líder negro que no século XVII liderou a maior
resistência ao regime escravocrata à frente do Quilombo dos Palmares, em
Alagoas, é um dos mitos mais controversos da história brasileira. Da política
às artes, sua atuação guerreira inspirou de grupos militantes como o
VAR-Palmares a músicos jovens a exemplo de Chico Science, que batizou sua banda
de Nação Zumbi. Como herói da cultura afro-brasileira cuja data de morte foi
coroada como Dia da Consciência Negra, ele é saudado em músicas, sambas-enredo,
peças e filmes. Objeto de uma caudalosa bibliografia iniciada ainda em vida com
os relatos oficiais dos governos de Portugal e Holanda, o perfil dessa figura
emblemática é agora esquadrinhado pelos historiadores Jean Marcel Carvalho
França e Ricardo Alexandre Ferreira no livro “Três Vezes Zumbi” (Três
Estrelas), para quem o “Spartacus negro” não tem uma face, mas várias.
Segundo os autores, podem ser identificados três perfis
diferentes para o líder quilombola: o Zumbi dos Colonos (séculos XVII e XVIII),
que colocava em xeque o projeto colonizador; o Zumbi do Brasil Independente
(século XIX), pintado como grande guerreiro para enaltecer o agente civilizador
que o combatia; e o Zumbi dos Oprimidos (século XX em diante), sobre o qual
seriam associadas aspirações emancipadoras que desaguariam no movimento das
minorias. “O livro é uma espécie de atlas, uma história da história de Zumbi,
dos discursos que se fizeram em torno dele ao longo dos séculos”, afirma
França. No desenvolvimento da ideia de Zumbi como uma construção ideológica, os
autores se defrontaram com dados conflitantes. A multiplicidade de peças que
não se encaixam no quebra-cabeça começa com o seu próprio nome. Existem
registros de que ele teria também a alcunha de Zambi, Zombi, Zombé e Zumbé – a
grafia Zumbi teria sido estabelecida em meados do século XIX. Mais: Zumbi, cujo
significado é diabo e Deus das guerras, seria um título na hierarquia do
quilombo, e não um nome, hipótese confirmada nos documentos da época.
Outra controvérsia diz respeito à sua morte. Até o século
XVIII, a versão mais conhecida era a de que ele teria se matado, pulando de um
penhasco. A partir daí, ficou aceito que Zumbi teria sido morto por um
ajudante. “Cartas falam da traição de um mulato, mas é sabido que na época esse
termo era malvisto, se preferia a palavra pardo”, diz França, sugerindo que o
assassino talvez não pertencesse a Palmares. Os maiores absurdos começaram a
pipocar no século passado, quando o chefe dos escravos foi apropriado pelos
marxistas, que o tornaram um revolucionário e associaram a sua atuação à luta
de classes. O relato mais fantasioso vem do historiador gaúcho Décio de
Freitas, que praticamente inventou uma infância romantizada para Zumbi: ele
teria sido adotado por um padre, vivido como coroinha e retornado 15 anos mais
tarde a Palmares movido por ideais libertários. Freitas teria sacado essas
informações de correspondências do missionário. “São cartas que nunca foram
vistas e, certamente não existem”, afirma França.
Leia um trecho do livro:
Padre Antônio Vieira, ao contrário, não via com bons olhos
qualquer medida que, como a proposta por Brito Freire – que certamente não foi
o único –, visasse reintegrar os pretos amotinados de Palmares. Numa carta
escrita em 1691 ao desembargador do Paço, Roque Monteiro Paim, o jesuíta
explica que os habitantes do quilombo, além de não confiarem nos padres, eram
rebelados e cativos, perseverando “em pecado contínuo e atual”, o que os
impossibilitava de “ser absoltos, de receber a graça de Deus e de se restituírem
ao serviço e obediência de seus senhores”. A única maneira de trazê-los de
volta à sociedade, prossegue Vieira, seria restaurar-lhes a liberdade, medida
totalmente inviável, já que traria “a total destruição do Brasil”, pois, quando
os demais pretos soubessem que os palmarinos tinham, por meios não legais, se
livrado do cativeiro, “cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam
logo outros tantos Palmares”.
Malgrado, no entanto, essas e outras tantas menções de
holandeses e portugueses ao quilombo e aos problemas por ele suscitados, não há
registros escritos descrevendo sua suposta destruição definitiva, no início do
século XVIII, pelo bandeirante Domingos Jorge Velho. Todavia, cedo, muito cedo,
após a sua derrocada final, o quilombo voltou a figurar nos escritos da época,
evidenciando que a insubordinação, evasão e reunião de escravos eram
preocupações permanentes da sociedade colonial brasileira – como haviam sido
para os invasores holandeses de outrora –, sobretudo de seus poucos homens de
letras, homens em geral livres, culturalmente brancos, ricos e preocupados com
a insubordinação da escravaria.
Malgrado, no entanto, essas e outras tantas menções de
holandeses e portugueses ao quilombo e aos problemas por ele suscitados, não há
registros escritos descrevendo sua suposta destruição definitiva, no início do
século XVIII, pelo bandeirante Domingos Jorge Velho. Todavia, cedo, muito cedo,
após a sua derrocada final, o quilombo voltou a figurar nos escritos da época,
evidenciando que a insubordinação, evasão e reunião de escravos eram
preocupações permanentes da sociedade colonial brasileira – como haviam sido
para os invasores holandeses de outrora –, sobretudo de seus poucos homens de
letras, homens em geral livres, culturalmente brancos, ricos e preocupados com
a insubordinação da escravaria.
Muito bom. Em breve te encontro a cachoeira. Estive ocupado com projetos pessoais. Um beijo do observador.
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