Texto de Rubem Alves
Você pediu que eu
escrevesse sobre a maldade. Foi a primeira vez que uma pessoa me pediu isso.
Você foi corajoso porque falar sobre a maldade é falar sobre nós mesmos. A
maldade é algo que mora dentro de nós, à espera do momento certo para se
apossar do nosso corpo. Ao pedir que eu falasse sobre a maldade você me pediu
que o ajudasse a entender o lado escuro de você mesmo.
Para a gente entender a
maldade é preciso entender, antes, os dois poderes de que somos feitos. Somos
feitos de uma mistura de amor e poder. Amor é um sentimento que nos liga a
determinadas coisas, e vai desde o simples gostar até o estar apaixonado. O
amor quer abraçar, ficar perto, proteger. Amo meu cachorrinho: quero brincar
com ele, tenho saudade dele. Se ele morrer eu vou chorar. Gosto da minha casa.
Dói muito – dá raiva – se alguém picha de preto o muro que tinha justo sido
pintado de branco. Gosto muito de uma pessoa: pode ser o pai, a mãe, o avô, a
namorada. Por causa desse sentimento fico triste vendo que aquela pessoa está
triste. O amor faz isso: coloca o outro dentro da gente. O que o outro sente, a
gente sente também. Um amigo meu, pedreiro, senhor João, a primeira coisa que
fazia quando me visitava em minha casa era salvar, com um peneira, as abelhas
que estavam morrendo afogadas na piscina. Ele sofria com as abelhas.
Por isso, muitas pessoas
são vegetarianas. Elas não suportam pensar na dor por que passam os bichos para
que nós nos lambuzemos com a carne deles. Uma pessoa muito querida, que não é
vegetariana, não consegue comer frango ao molho pardo. O molho pardo desse
frango se faz com sangue – e ela se lembra de haver visto frangos de pescoço
cortado, pendurados num gancho, agonizantes, seu sangue vagarosamente pingando
num prato. Agora, sempre que ela vê frango ao molho pardo, ela se lembra do
sofrimento daquela ave inocente. Os bichos também sofrem.
O amor nos liga à natureza
toda. Eu amo a natureza – os riachos de água limpa, as cachoeiras frias, as
matas com suas samambaias, avencas, orquídeas, bananeiras, as borboletas,
cigarras, pássaros. Nós humanos, temos olhos deformados – não percebemos a
beleza dos seres que são diferentes da gente. Mas todos eles, inclusive os
besouros (que alguns chamam de “bisorros”), as rãs, os lagartos, as
marias-fedidas, as taturanas, os urubus – todos eles querem viver, sofrem,
fazem parte desse nosso mundo e são necessários à sua existência. Todos eles
são nossos irmãos – porque todos nós teremos o mesmo fim. Um dia nós voltaremos
à terra e, quem sabe, renasceremos como besouro ou galinha…
Aquilo que eu amo eu quero
proteger. Proteger o cachorrinho, o muro de casa, a natureza… Às vezes, a gente
quer algo anterior ao proteger: a gente crer criar. Você ainda não é pai. Não
tem, portanto nenhum filho para proteger. Chegará um dia, entretanto, em que
você desejará ter um filho que você ainda não tem. Para isso é preciso que você
tenha os poderes de homem – para semear no ventre de uma mulher a semente do
filho que você ama, mas ainda não tem. Você deseja ser (ainda não é)
administrador de empresa, cozinheiro, médico ou flautista: você ama essas
coisas; mas ainda não é. O amor sozinho, não faz milagres. Para ser qualquer
dessas coisas você terá que, devargazinho, ir desenvolvendo poderes no seu
corpo, poderes que tornarão a forma ou de conhecimentos ou de habilidades.
Quando você tem essas duas
coisas juntas o amor e o poder, coisas muito bonitas acontecem. O poder torna
possível a existência daquilo que a gente ama: gero um filho, planto um jardim,
construo uma casa.
O poder, assim está a
serviço da alegria. Pelo poder eu posso contribuir para que o mundo seja
melhor. O poder e o amor juntos, estão a serviço da preservação da vida.
Acontece, entretanto que a
vida anda devagar. Leva tempo para uma criança ser gerada. Leva tempo para uma
árvore crescer. Por vezes, ao plantar uma árvore, a gente sabe que nunca se
assentará à sua sombra.
Já a morte anda rápido.
Mata-se numa fração de segundo. Basta puxar um gatilho. Ou pisar o bicho. Ou
quebrar o ovo. Corta-se uma árvore que levou cem anos para crescer em poucos
minutos: se for uma bananeira, basta um golpe de facão.
Você me perguntou sobre a
maldade: a maldade é isso – quando as pessoas sentem prazer no ato de destruir,
isto é quando as pessoas sentem prazer no exercício puro do poder, sem que esse
poder tenha um objetivo de vida. Bondade é o poder usado para a vida. Maldade é
o poder usado para a morte.
A adolescência é o momento
da vida quando se descobrem as delícias do poder. Criança tem amor mas não tem
poder. Ela quer sorvete mas não tem o dinheiro. A mãe segura, põe de castigo,
dá palmada. A criança é impotente. Na adolescência o corpo se desenvolve. Fica
maior que o corpo da mãe, o corpo do pai. Ganha força. Juntos, então os
adolescentes se constituem num exército poderoso. É por isso que os
adolescentes gostam de estar juntos: isso lhes dá um sentimento de poder. Há
coisas que nunca fariam sozinhos. Mas, em grupo, tudo é permitido. As pessoas
mais mansas podem se tornar monstruosas em grupo. No grupo a gente perde o
senso da responsabilidade moral.
Como eu já disse, o poder,
como fim em sim mesmo, sem um propósito de amor, dá prazer rápido. Quebrar,
pichar, arrancar, bater, cortar esmagar, derrubar – todas essas são formas do
poder-prazer a serviço da morte. É uma coisa demoníaca.
Por isso, meu amigo,
adolescente, quero confessar uma coisa que nunca confessei: “Tenho medo de
vocês”. O fascínio que vocês têm pelo poder me assusta. É isso que é maldade:
poder sem amor.
Eu queria poder dar para
vocês, como herança, o ovo onde moram os meus sonhos, na esperança de que vocês
continuassem a chocá-lo, depois da minha partida. Sim, o mundo que eu amo se
parece com um ovo: está cheio de vida mas é muito frágil. Dentro dele estão
coisas delicadas, fáceis de serem destruídas: plantas, insetos, ninhos, aves,
músicas, poemas, memórias, livros, peixes, muros brancos, crianças, velhos,
jardins…
Mas eu tenho medo que
vocês não resistam à tentação de quebrar o ovo onde eu e o meu mundo moramos.
Como é fácil quebrar um ovo! Fácil e irreversível: nunca mais! Assim, por
enquanto, o ovo onde moram meus sonhos fica sob a minha guarda. Até encontra os
herdeiros que eu espero.
In Correio Popular,
Campinas, 24.II.96
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