Este artigo pretende
discutir um problema que têm atraído a atenção de educadores e filósofos: a
criança é capaz de filosofar? Certo que a filosofia contribui para se pensar a
infância. Mas será que os filósofos e os educadores estão dispostos a
considerar o potencial filosófico das crianças? A resposta não é simples,
porque como nos mostra Garetth Matthews, as correntes tradicionais do
pensamento filosófico e psicológico dizem que isso não é possível, pois a
criança ainda não estaria de posse do instrumental cognitivo necessário à
abstração filosófica.
A questão tem mais ou
menos 2500 anos de história. Na tradição filosófica, somente homens adultos
praticavam a filosofia, e ainda assim, nem todos os homens. Max Scheler,
fazendo referência a Platão, diz que “as massas nunca serão filósofas”
(SCHELER, 1986:7). A filosofia, como ramo do conhecimento ocidental, permaneceu
historicamente influenciada por esse pensamento. Acreditava-se que nem mesmo as
mulheres tinham competência para dominar o pensamento filosófico. Santo
Agostinho, ao elogiar sua própria mãe, que participava de um diálogo filosófico
com ele e outros homens, revela a idéia da época: “…esquecidos inteiramente do
seu sexo, pensamos que algum grande homem se encontrava sentado conosco”.
(SANTO AGOSTINHO, 1988:41) As mulheres só conseguem franquear essa fronteira no
final do século XIX.
Não só se viu sempre restrição
para se filosofar, como se criaram barreiras para o acesso à filosofia,
sobretudo pela linguagem especializada. Segundo Max Scheler, a filosofia
pertence e sempre pertenceu a uma elite que se reúne em torno da personalidade
de um pensador. Em 1835, o poeta e pensador Heinrich Heine já denunciava o
elitismo de muitos filósofos, recomendando que quando lessem sua obra fizessem
“o obséquio de considerar
que o pouco que digo é expresso de modo bem claro e distinto, ao passo que, por
mais profundas, (…) e por mais penetrantes, (…) que sejam suas obras, são ainda
assim, incompreensíveis. De que servem os celeiros fechados, se o povo não lhes
tem as chaves? O povo tem fome de saber e me agradece o pequeno pedaço de pão
espiritual que com ele honestamente partilho.” (HEINE, 1991:19)
Atualmente, as restrições
são menores, apesar dos que alegam que a filosofia não é coisa simples, pois
para se fazer filosofia no sentido acadêmico e profissional é preciso adentrar
um universo complexo e cheio de termos técnicos e conhecer as várias tradições
e sistemas de pensamento. Os argumentos do filósofo devem ser difíceis e
sofisticados. Nesses termos, a filosofia é de fato para poucos iniciados, que
só poderão filosofar, após um longo e trabalhoso processo de estudos e acúmulo
cultural. Ao invés, segundo Bochenski, a filosofia é um assunto que não
interessa apenas a especialistas e profissionais, porque todos os seres humanos
em alguma circustância da vida filosofam. Estamos obrigados a filosofar.
William James, entendendo também que filosofar é próprio do ser humano
racional, explica que todos os seres humanos se defrontam com perguntas como: O
que você pensa de si mesmo? O que você pensa do mundo? São enigmas da esfinge
e, de uma forma ou de outra, precisamos lidar com eles, diz James.
Gadotti, citando Gramsci,
também critica o elitismo filosófico, pois é mais importante que os seres
humanos aprendam a pensar e a refletir de maneira coerente e filosófica em suas
questões existenciais, do que uns poucos intelectuais ficarem especulando sobre
conceitos que permanecerão restritos a eles.
“Uma filosofia para
crianças e jovens não estaria preocupada em formar discípulos para perpetuar um
certa corrente filosófica, uma certa visão de mundo, mas para ajudar a pensar e
a transformar o mundo. Conceber a filosofia como uma especialidade é derrotá-la
antes mesmo de iniciar a batalha por ela. ” (GADOTTI, 2000:28)
O que há de comum entre
filósofos e crianças?
Mas reconhecer a
capacidade da criança filosofar é um passo que até agora poucos deram. Em
geral, os filósofos estão afastados da infância. Em seus sistemas, a criança
não tem espaço, a não ser em esporádicas citações. Sartre, só para citar um
caso, anotava que a preocupação com as crianças e animais é desinteresse nas
questões do homem (SARTRE, 1972). Parecem os filósofos esquecer que um dia
foram crianças, que receberam atenção por parte dos adultos, talvez pessoas que
não desprezaram seu potencial de pensar, amar, sonhar e agir no mundo.
Embora a filosofia
acadêmica tenha esquecido a infância e Platão tenha uma concepção filosófica
elitista, as primeiras indagações filosóficas sobre “o que é a criança” e qual
o melhor meio para se educá-las, nasceram na Grécia, exatamente com Platão e
Aristóteles. Tanto que Jaeger aponta Platão como o fundador da pedagogia da
primeira infância. Ainda assim, os gregos não reconheciam as capacidades
infantis.
“A criança entra pela primeira vez no tempo
ocidental na teoria platônico-aristotélica do eu tríplice e suas vicissitudes.
Na criança, o equilíbrio entre as três dimensões do eu — apetite, vontade e
razão — está ontogeneticamente desbalançado. A criança carece de razão. Por
isso Platão considerava que as crianças eram modelos do apetite indomado e da
vontade descontrolada. (…) A única virtude das crianças parece ser o fato de
serem ‘facilmente moldadas’, isto é, elas podem ser convertidas em adultos”
(KENNEDY, 1999:79)
Apesar disso, os filósofos
antigos, ainda que em poucas referências, usavam a filosofia para pensar a
infância. Sabiam da importância da educação infantil. Para eles, não
significava uma desqualificação incluir a criança em seu pensamento.
A criança só vai entrar em
cena como uma das principais preocupações humanas, nos séculos XVI e XVII e um
dos maiores representantes dessa filosofia voltada à infância é o educador e
filósofo checo Jan Amos Comenius. Para ele, somente através da educação,
pensando primeiro na infância e depois no homem, é que atenderemos à realização
humana para a felicidade. Segundo ele, “as crianças não são unicamente o objeto
mas o modelo da verdadeira reforma”(COMENIUS, 1954:47) Mais tarde, Jean-Jacques
Rousseau revolucionou a pedagogia, como o filósofo da infância que mais se
preocupou com a relação entre a criança, o adulto e a sociedade. Rousseau entra
em diálogo com o mundo infantil e não ignora suas muitas potencialidades. O
centro da reflexão filosófico-pedagógica passa ser a infância como fase
autônoma e específica. Pestalozzi também se preocupa com isso. Muitos
pensadores dos séculos XIX e XX voltaram suas principais atenções à infância.
Eram filósofos da infância e educadores, que reconheceram e ressaltaram as
capacidades das crianças. E alguns, como Pestalozzi, foram monos prezados como
filósofos, justamente por se preocuparem com as crianças.
Ao contrário das
afirmações dos especialistas, de que teria sido o norte-americano Matthew
Lipman o primeiro a ter acenado com a possibilidade das crianças filosofarem,
Comenius nos informa que essa hipótese é tão velha quanto a filosofia. De
acordo com ele, vem da Grécia antiga, e teria sido Pitágoras o primeiro a fazer
menção a ela. (COMENIUS, 1954:83)
Isso não anula o mérito de
Lipmam por ter defendido o direito da infância em praticar a filosofia. Depois
de décadas de pesquisas, Lipman chega à conclusão de que o impacto dessa
filosofia nas crianças não pode ser observado imediatamente, mas o impacto nos
adultos de amanhã poderá ser tão espantoso que nos lamentaríamos por tê-las
privado até hoje do acesso à filosofia.
Diz Kohan:
“Serão as crianças que
construirão suas filosofias e seus modos de produzi-las. Não é mostrando que as
crianças podem pensar como adultos que vamos revogar o desterro de sua voz.
Pelo contrário, nesse caso haveremos cooptado, o que constitui uma outra forma
de silenciá-las. Seria mais adequado preparar-nos para escutar uma voz
diferente como expressão de uma filosofia diferente, uma razão diferente, uma
teoria do conhecimento diferente, uma ética diferente e uma política diferente:
aquela voz historicamente silenciada pelo simples fato do emanar de pessoas
estigmatizadas na categoria de não adultos” (KOHAN, 1999:70)
Segundo Lipman, as
objeções feitas para as crianças não fazerem filosofia, estão diminuindo e
dando lugar a novas perguntas: qual o tipo de filosofia que as crianças podem
fazer? Embora haja diferenças entre a fase infantil e a adulta, para Garret
Matthews, elas não são tão significativas, a ponto das crianças não poderem
entrar no mundo adulto e em companhia destes compartilhá-lo. As crianças não
estão distantes do paradigma da racionalidade adulta, como se pensa.
“Tenho comentado muitas
vezes que, quando encontramos um grupo de crianças completamente engajadas em
pensar sobre a questão filosófica, as crianças simplesmente reinventam a
história da filosofia. Com esse comentário quero dizer que o raciocínio
filosófico das crianças com frequência lembra o raciocínio de Platão,
Descartes, Bertrand Russel e outros grandes pensadores da história da
filosofia. ” (MATTHEWS, 1999:37)
Ao se trabalhar a
filosofia com as crianças, percebe-se facilmente que elas têm inclinação natural
para a curiosidade, admiração, indagação, discussão e reflexão. Esses são
traços cognitivos do empenho que a criança faz para descobrir como as coisas
funcionam no mundo. Ann Sharp diz que as crianças buscam compreender o
significado das palavras e as ações das pessoas que estão à sua volta. Os
conceitos de bem, verdade, tempo, amizade, liberdade, amor, são centrais para o
modo como a criança constrói o mundo. Por isso, é essencial que discuta esses
conceitos e sentimentos e lhes dê significado.
“Se me perguntassem por
que em me envolvi na ideia de que as crianças façam filosofia, diria que é porque
me sinto ofendida com a ideia de que tratamos crianças como se fossem depósitos
e as mutilamos até que sejam maiores de idade. Elas fazem dezoito anos e continuam
utilizando palavras como amor, amizade sem saber do que estão falando.” (SHARP,
1998:17)
Entretanto, essa busca
pode ser filosófica ou não-filosófica, dependendo dos meios e os métodos
utilizados para se chegar à construção de conceitos e interpretação do mundo.
Assim, podemos nos indagar o que caracteriza um pensamento filosófico. Se as
conversas, os diálogos, estabelecidos com as crianças, forem apenas uma troca
de opiniões, isso não indica um debate filosófico. Reconhecemos se uma troca de
ideias é filosófica, analisando se os temas são da alçada da filosofia e se
estão sendo usadas as ferramentas da indagação filosófica: as habilidades de
raciocínio, o diálogo de auto avaliação e a reflexão em torno dos diferentes
assuntos. O debate em curso deve exigir capacidade de raciocínio e chegar a
diferentes modelos de fazer, dizer e agir. Lorieri acha que são características
básicas do pensamento filosófico: “a autonomia do pensar, a reflexão crítica e
criativa, a ‘reinvenção’ e ‘reconstrução’ contínua e continuada das
significação humanas.” (LORIERI, 2000:54)
Nesse sentido, poderíamos
dizer que as crianças parecem estar mais aptas a filosofarem do que boa parte
dos adultos. Não que elas teriam mais capacidade de elaborar raciocínios
difíceis e complexos do que filósofos profissionais. Ou que encontrariam mais
facilidade para compreender os vários sistemas filosóficos. Ou ainda, que
dominariam um vocabulário técnico com mais competência que um adulto. Não é
isso. É que elas têm mais a ver com a essência do pensar filosófico.
Segundo Platão e
Aristóteles, a admiração é o princípio da filosofia. Para os filósofos antigos
e também para os modernos como Descartes, a admiração está na raiz da dúvida,
da interrogação e da investigação, portanto, no início do filosofar. É próprio
do pensar infantil a imensa capacidade de admirar o mundo, no processo de construção de significados e
valores. O adulto já tem suas certezas e seus valores e está em meio a tantas
preocupações cotidianas, a tantos desencantamentos, que perde a capacidade de
admirar-se perante a existência.
Outro aspecto é a postura
do não-saber, pois a folosofia não começa com o acúmulo de conhecimento, e sim
com o seu contrário, o não-saber. Sócrates parte da afirmação de que nada sabe,
Descartes assume a dúvida como início de seu filosofar. Os filósofos guardam,
ou pelo menos devem guardar, a humildade de não saber tudo, inclusive para
continuar filosofando, sem necessariamente cair no ceticismo radical. A
abertura mental e a disponibilidade para fazer perguntas é condição para a
filosofia. Mas o ser humano adulto comum tem opiniões prontas e sistemas
fechados. Assumir uma postura de não-saber é bem mais problemático para ele do
que para uma criança. A criança naturalmente está em atitude de aprendizado
diante da vida.
Lembrando ainda Sócrates,
pode-se ver em sua prática maiêutica uma relação intrínseca entre o ato de
filosofar e o ato de educar, quase uma identificação entre ambos. Como
filósofo, não tinha verdades prontas e sistemas acabados e, como educador, não
pretendia transmitir conhecimentos, como faziam os aristocratas do saber. Nem
tampouco pretendia vender o saber, como faziam os sofistas, ensinando a arte do
falar. A tarefa que se impõe é questionar, interrogar, dialogar com seus
interlocutores a fim de que possam parir a verdade que está dentro deles.
Assim, filosofia e educação se encontram, porque em última análise, a verdade
filosófica só pode ser atingida por um ato pedagógico e a educação deve ser a
busca da verdade. Então, embora fosse Platão elitista em relação à filosofia, a
atitude de Sócrates é democrática (tanto que extrai a verdade de um escravo
como Menon) e nos põe no caminho de começar a fazer isso o mais cedo possível.
Assim, se a filosofia
nasce da admiração e do reconhecimento do não-saber e se o filosofar não é,
como queriam os sofistas, adquirir um saber, ou uma atitude acadêmica e
profissional de poucos cultos, mas sim um questionamento sobre a vida, um apelo
à consciência do ser e um parto da alma, com a ajuda dos mestres, a criança é
sim capaz de filosofar e ser interlocutora da filosofia. É nesse sentido que se
pode dizer que as crianças estão mais perto da filosofia, do que boa parte dos
adultos.
Fonte: artigo retirado de http://www.hottopos.com/rih6/dora.htm
Vídeos: alunos de turmas do 6º ano do fundamental 2 do Colégio Dáulia Bringel
Tia adorei, isso é muito interessante. O texto explica que pensar é mais difícil que trabalhar e concordo porque pensar a gente tem que trabalhar com a nossa mente e as vezes acaba sendo mais cansativo e dificil. Luana San... 6M2
ResponderExcluirsim pois as crianças tem mais criatvidade
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