quinta-feira, 30 de julho de 2015

LUCRÉCIA BÓRGIA


Retrato de uma Mulher por Bartolomeo Veneto,
 tradicionalmente considerado como de Lucrezia Borgia.

























Se Judas encarna a imagem do traidor, Lucrécia Borgia representa a manipuladora sem escrúpulos de costumes depravados. Mas a realidade é bem diferente. Aquela que é descrita como uma envenenadora e uma depravada foi, na realidade, uma aristocrata erudita.
Fruto da união entre o cardeal Rodrigo Bórgia e sua favorita, a patrícia romana Vannozza Cattanei, Lucrécia nasceu em 18 de abril de 1480. Recebeu a educação refinada das crianças da aristocracia, que era uma preocupação de seu padrasto, o humanista Carlo Canale. Ela aprendeu línguas antigas, se familiarizou com a poesia, dedicou-se à música e estudou filosofia e letras latinas. Aristóteles, Tito Lívio, Salústio e Virgílio balizaram uma formação que, tanto quanto sua beleza, se revelaria útil para o destino que lhe estava reservado.

Na adolescência, Lucrécia mudou-se para o palácio de seu pai. Cresceu então à sombra do poder da Igreja. O Vaticano tinha sua corte, assim como a dos reinos da França, Inglaterra e Espanha. Era fértil também em artes e, sobretudo, em intrigas. O cardeal Bórgia subiu ao trono de Pedro em 1492. Lucrécia tornou-se, a partir de então, filha do papa Alexandre VI. De espectadora das lutas pelo poder, tornou-se protagonista das ambições de seu clã e trunfo no jogo político de seu pai.

Nada distinguia a casa pontifical das outras casas principescas da época. Nem seus costumes nem suas preocupações, das quais a principal era consolidar e estender a influência familiar, reforçando a da Igreja. Essa era a obsessão dos soberanos pontífices desse final de século XV. Era evidentemente também ao papa Borgia, cujos Estados papais se estendiam por toda a parte central da península, cercados pelos domínios da família Aragão em Nápoles, dos Sforza de Milão e dos Médicis de Florença. Afirmar o poder da Igreja passava tanto pela ostentação de uma corte e a organização de um exército poderoso como pelo casamento diplomático.

Retrato de uma Mulher por Bartolomeo Veneto,
 tradicionalmente considerado como de Lucrezia Borgia.


























  • Aos 11 anos, Lucrécia foi prometida, no espaço de seis meses, a dois maridos diferentes: um aristocrata espanhol e depois um italiano. Mas foi com o condottiero Giovanni Sforza, senhor de Pesaro, que a adolescente de 13 anos se casou, em 1493. Os riscos de uma invasão francesa a Roma e a peste que devastava a Cidade Eterna precipitaram a ida do casal para Pesaro. Em 10 de junho de 1494, Lucrécia enviou uma carta a Alexandre VI na qual expressava a admiração e o carinho que ela dedicava a seu pai. Descobrimos uma adolescente comedida e ponderada que revelou certo desinteresse em relação às festas que celebravam sua chegada ao novo domínio de Pesaro. A aliança com os Sforza revelou-se rapidamente um erro estratégico para o clã Borgia. Alexandre VI conseguiu anular o casamento em 1497, afirmando de maneira não comprovada que ele não havia sido consumado. Giovanni Sforza, humilhado ao ser chamado de impotente, vingou-se, espalhando o boato de relações incestuosas entre Lucrécia, seu irmão César e o papa. Foi o primeiro elemento que alimentaria a lenda negra de Lucrécia.

  • Peça do jogo de xadrez diplomático de seu pai, ela não poderia ficar sozinha muito tempo. Casou-se novamente em 1498 com Afonso de Aragão, filho do rei de Nápoles. Apaixonou-se por ele e o casal, longe das intrigas políticas, vivia tranquilamente em Roma, onde ele mantinha uma corte frequentada pelos cardeais Médicis e Farnese, os pintores Michelangelo e Pinturicchio. Lucrécia recebia com fidalguia em seu palácio romano artistas e literatos. Falavam de artes. Lucrécia animava essa sociedade e ali brilhava pela vivacidade de seu espírito. Mas não por muito tempo. Novamente seu casamento foi insatisfatório para os Borgia. Como o nascimento de um filho tornou impossível uma anulação, César optou por uma solução radical: o assassinato do cunhado por um de seus homens.

  • Divorciada e viúva aos 21 anos, Lucrécia se casou pela terceira e última vez com Afonso I d’Este, duque de Ferrara, em 1505. Com a morte de Alexandre VI, em 1503, ela pôde enfim viver dias felizes. Apresentou-se como protetora das artes e das letras, cercou-se de muitos poetas, particularmente de Ludovico Ariosto – que lhe dedicou Orlando furioso – e Pietro Bembo, por quem nutria um amor platônico – que lhe dedicou Gli Asolani. Ela inspirou também os pintores, protegeu Dosso Dossi, Rafaele Garofalo e Ticiano.


Holliday Grainger, 
como Lucrécia na série canadense-húngara-irlandesa Os Bórgias 



  • O fim de sua vida foi triste devido à morte brutal de seus próximos e abortos que a enfraqueceram. Em 14 de junho de 1519, ela deu à luz uma menina, que morreu em seguida. Dez dias mais tarde, aos 39 anos, faleceu de uma septicemia. Ela foi, de fato, duas vezes vítima das ambições do pai e dos inimigos de sua família. Sua lenda negra, que tem como origem a vingança destes últimos, se perpetuaria após sua morte. 
  • O filósofo Leibniz, no século XVII, insistiu em sua depravação – um mal característico do reino de Alexandre VI – e Voltaire lhe fez eco no suposto incesto com seu Essais sur les moeurs (1756). 
  • No século XIX, Lucrécia foi uma fonte inesgotável de inspiração para os românticos. Fascinou lorde Byron, tornou-se a heroína de uma tragédia de Victor Hugo (1833), foi objeto de um conto fantástico de Mérimée e figurou com destaque em Les crimes célèbres, de Alexandre Dumas. 
  • O historiador Jules Michelet chancelaria essa imagem de m`essalina incestuosa e intrigante.


Texto de Olivier Tosseri, jornalista, é especialista em assuntos do Vaticano

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