Educadas desde cedo para o
casamento, as mulheres
pertencentes a famílias ricas passavam da tutela do pai
para a do marido.
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Entre as práticas
sobreviventes do Brasil colonial que passavam por uma fase de declínio na
segunda metade do oitocentos, embora ainda presente dentro de algumas famílias
com certo poder aquisitivo, estavam os casamentos arranjados, concebidos pela
sociedade argentária como uma forma lícita para se contrair propriedade e
riqueza.
Segundo a historiadora Mariana Muaze: “foi recorrente até o final do
século XIX o recurso de se constituir matrimônio dentro da mesma família ou
entre troncos familiares com negócios em comum com o objetivo de não deixar a
riqueza se dissipar” (2008, p. 18).
Uma das principais críticas feitas por José
de Alencar nos seus romances urbanos se refere justamente a esse tipo de união,
motivada por interesses econômicos e que tinha na concessão do dote das noivas
a sua característica comercial mais nítida.
Segundo Muriel Nazzari, “o dote foi
uma instituição europeia que os portugueses, colonizadores do Brasil no século
XVI, trouxeram com eles, juntamente com o cristianismo e outros implementos
culturais europeus”. Segundo esses costumes, “conceder um dote a uma filha
constituía um dever dos pais, análogo ao dever de alimentar e cuidar dos
filhos, e só era limitado pela amplitude dos recursos de que dispusessem (2001,
p. 15-16).
Esse tipo de união
predominou no Brasil do século XVII, até a primeira metade do XX, quando
algumas mudanças de cunho social, em sua maioria importadas dos países
europeus, alteraram o pacto matrimonial, tais como o crescimento do
individualismo e a separação entre os negócios e a família.
Assim, o dote foi
aos poucos deixando de ser um requisito indispensável para a realização dos
casamentos, que passaram a ser vistos mais como uma questão de vínculo pessoal,
do que como uma questão de bens, o que deu aos jovens maior liberdade na
escolha de seus parceiros.
Ainda de acordo com Muriel Nazzari:
Entre o século XVII e o
final do século XIX, desenvolveu-se um novo conceito de propriedade privada. A
família deixou de ser o locus da produção e do consumo, para se tornar principalmente
o locus do consumo, ao mesmo tempo que “família” e “empresa” passaram a estar
formalmente separadas. O poder da família extensa entrou em decadência e a
família conjugal tornou-se mais importante; o casamento transformou-se, de
questão predominantemente de propriedade, em relacionamento reconhecido como
“de amor”, cujos esteios econômicos já não eram explicitados. Ao mesmo tempo,
houve uma mudança da forte autoridade do patriarca sobe os filhos e as filhas
adultos para uma maior independência destes, e dos casamentos arranjados para
os casamentos livres escolhidos pelos noivos (NAZZARI, 2001, p. 22).
Se antes era comum que as
famílias arranjassem casamentos entre pessoas que nunca se viram, agora os
pais, que, de acordo com os manuais de etiqueta importados da França, entendiam
as necessidades dos filhos melhor do que os mesmos, começaram a estimular
encontros entre o possível casal, para que o interesse mútuo e a atração sexual
fossem despertados.
Nesse pacto matrimonial, a questão do dote não estava mais
em pauta. Se comparado ao período colonial, os proprietários dotavam suas
filhas com menor frequência e com quantidades de bens cada vez menores, pois “o
sustento dos recém-casados passou então a depender cada vez mais da
contribuição do marido, quer em bens, quer por seu emprego, fortalecendo-se
desse modo a sua condição de negociador” (NAZZARI, 2001, p. 211). O casamento
também poderia ser para o homem uma forma de se inserir e prosperar no mercado
de trabalho, através do qual ele conseguiria estabelecer sua família e
conquistar o respeito da sociedade.
Educadas desde cedo para o
casamento, as mulheres pertencentes a famílias ricas passavam da tutela do pai
para a do marido.
Educadas desde cedo para o
casamento, as mulheres pertencentes a famílias ricas passavam da tutela do pai
para a do marido.
Na segunda parte de
Senhora, intitulada Quitação, a viúva D. Emília Camargo estimulava sua filha a
se debruçar na janela para chamar a atenção de algum rapaz que se dispusesse a
tomá-la em casamento: “Vai para a janela, Aurélia”, pois “muitos moços se te
conhecessem haviam de apaixonar-se. Poderias então escolher algum que te
agradasse”, ao passo que a moça retrucava: “casamento e mortalha no céu se
talham, minha mãe” (ALENCAR, 1997, p. 83). Mesmo assim, Aurélia satisfez o
desejo de D. Emília e foi dessa forma, enquanto se exibia na janela da casa,
que ela conheceu Fernando Seixas. Os dois se interessaram um pelo outro e então
o moço passou a frequentar a residência da família em Santa Teresa, onde se comprometeu
com a mãe da jovem a tomar Aurélia como esposa. “Deus ouviu minha súplica”,
exclamou D. Emília, “agora posso morrer descansada” (ALENCAR, 1997, p. 90).
Nesse caso, o poder de escolha foi exercido por ambos os pares, independente da
vontade da genitora, que se deu por satisfeita diante da perspectiva de ver sua
filha como noiva, pois o matrimônio era o destino da maioria das mulheres
ocidentais. Uma vez casadas, elas deixavam a tutela paterna e se tornavam
“propriedade” dos maridos.
Dessa forma, o crescimento
do individualismo diminuiu assim um pouco o poder dos genitores sobre seus
filhos adultos e consequentemente aumentou a autoridade do homem sobre a
esposa. Segundo Roderick Barman:
A missão de vida da mulher
consistia em prestar apoio, conforto e lealdade ao marido e em gerar e criar
seus filhos. As mães educavam as filhas não só para contar com esse destino,
mas também para aceitá-lo de bom grado. A falta de alternativas na vida, a
possibilidade de escapar à condição dependente e obediente de filha e a atração
da sexualidade masculina eram poderosos incentivos para aceitar esse fato. Aos
olhos da sociedade, o casamento conferia status (grifo do autor) e certa
influência à mulher (BARMAN, 2005, p. 78).
O século XIX,
especialmente, acentuou a divisão de papéis entre homens e mulheres. Cada um
tinha suas funções, tarefas e espaços, com lugares a serem ocupados e definidos
nos seus mínimos detalhes: para p marido, o espaço público, para a esposa, o
privado. De acordo com Michelle Perrot, “existe um discurso dos ofícios que faz
a linguagem do trabalho uma das mais sexuadas possíveis. ‘Ao homem, a madeira e
os metais. À mulher, a família e os tecidos” (1992, p. 178). A própria política
havia contribuído para acentuar essa interpretação dos papéis masculinos e
femininos ao distinguir as categorias produção, reprodução e consumo. Nesse
caso, caberia ao homem assumir a primeira, enquanto a mulher ficara com a
terceira. A segunda (a da reprodução), contudo, seria tarefa de ambos.
Nos casamentos arranjados,
era comum moças de 16 anos se casarem com homens de 60 (Vasili, 1861).
Em 1887, o alemão Maurício
Lamberg observou que as regras de noivado no Brasil se baseavam numa espécie de
puritanismo como ele jamais tinha visto: antes do casamento, ”a nenhuma moça é
permitida caminhar na rua sem ir acompanhada de um parente muito próximo”[6],
muito menos acompanhada do noivo, “que, aliás, não se atreve a tomar com a
noiva nenhuma das acostumadas familiaridades ou carinhos” (apud LEITE, 1993, p.
39). Ao contrastar as práticas matrimonias vigentes no Brasil com as da
Alemanha, Lamberg afirmou:
Se formos considerar os
fenômenos que são diariamente nas relações entre os dois sexos, encontraremos
desde logo uma diferença capital entre os costumes brasileiros e os alemães.
Enquanto na Alemanha, como aliás, nos países anglo-saxônicos, o noivado dura às
vezes anos, estabelecendo-se entre o rapaz e a rapariga relações que têm por
base um amor ideal, aqui, pelo contrário, o noivado é a bem dizer curto, e o
amor, que chega por vezes às raias da loucura, parece vir mais do sangue que da
alma. Isto observa-se, aliás, na raça latina, em geral, cujo temperamento é
diverso do nosso; e para isso influi, e não pouco, o clima, particularmente no
Brasil (apud LEITE, 1993, p. 39).
Complementando o
depoimento de Lamberg, o francês conde de Suzannet observou que “a situação
moral da população brasileira corresponde ao que era de esperar: a corrupção de
valores no Brasil é coisa demais conhecida para que eu cite exemplos”. Para
ele, o casamento entre as famílias ricas “é, apenas, um jogo de interesse.
Causa espanto ver-se uma moça ainda jovem rodeada de oito ou dez crianças”,
sendo que “uma ou duas, apenas, são dela, as outras são do marido” (apud LEITE,
1993, p. 43).
Juridicamente, o dote era
considerado como um adiantamento à filha da parte que lhe cabia por direito na
herança deixada por seus pais. Nesse
caso, “a filha dotada poderia escolher entre levar os bens à ‘colação’ –
somando-os ao monte bruto do inventário e dividindo-os com os outros herdeiros
– ou abdicar de sua parte na herança” (MUAZE, 2008, p. 47). No século XVII e,
em menor grau, no XVIII, quando a prática de conceder grandes dotes ainda era
comum, estes poderiam ser compostos tanto de dinheiro, como de terras, escravos,
animais, entre outros meios de produção. Isso se constituía numa grande
vantagem para as mulheres que, em certos casos, ficavam com uma parte maior dos
bens de seus progenitores do que o herdeiro varão. “Sendo as mulheres mais
ricas do que os homens, o que estavam em jogo para a família da nubente eram o
branqueamento, o enobrecimento e a capacidade de trabalho do noivo” (MUAZE,
2008, p. 45). Dessa forma, as filhas se tornavam numa espécie de mercadoria
essencial no processo de produção e reprodução familiar.
Com o declínio do dote, as
famílias passaram a estimular encontros entre os possíveis noivos para
estimular o florescimento de sentimentos entre eles (Tela de George Henry
Boughton, 1878).
Porém, ao longo do século
XIX essa prática passou por uma profunda transformação, uma vez que as filhas
dos proprietários estavam deixando de levar os bens para o casamento. Aquelas
que eram dotadas, recebiam itens apenas para uso próprio, como escravos, joias,
roupas, prataria, etc.
Segundo Mariana Muaze:
Segundo Mariana Muaze:
Durante muito tempo o dote
servira para que as filhas conseguissem bons casamentos, pois fornecia um
quinhão igual ou superior à sua parte na legítima, proporcionando um desfalque
considerável na fortuna do casal progenitor e na herança dos filhos homens. No
século XIX, a concessão do dote se transformou. Perdeu o caráter de veículo
privilegiado de transmissão de riquezas para que um casal iniciasse sua vida
produtiva. Seus valores raramente ultrapassavam a legítima e os pais não
necessitavam utilizar a terça para completar ou melhorar o dote da primeira
filha, como ocorria anteriormente (MUAZE, 2008, p. 48).
Todavia, o dote, apesar de
ter perdido sua força como requisito para um bom casamento, não caiu completamente
em desuso até o final do século. O tema ainda era abordado por muitos
romancistas do período, como o próprio José de Alencar, além de questão
presente em debates acadêmicos, na imprensa, entre outros veículos,
contrastando essa prática com o ideal de amor romântico em ascensão na segunda
metade do oitocentos, o que contribuiu para que a tradição se diluísse por
completo.
Referências bibliográficas.
BARMAN, Roderick J.
Princesa Isabel: gênero e poder no século XIX. Tradução de Luiz Antônio
Oliveira Araújo. – São Paulo: Editora UNESP, 2005.
LEITE, Míriam Moreira
(org.). A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX: antologia de textos
de viajantes estrangeiros. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1993.
MUAZE, Mariana. As
memórias da viscondessa: família e poder no Brasil Império. – Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2008.
NAZZARI, Muriel. O
desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudanças sociais em São Paulo,
Brasil, 1600-1900. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. – São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
PERROT, Michelle. Os
excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1992.
RIBEIRO, Luis Felipe.
Mulheres de papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de
Assis. – 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008.
Fonte: rainhastragicas.com
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