Reunidos à porta da sala
do professor José Pio Borges de Castro, os “bichos” estavam agitados como
nunca. Assim eram chamados os alunos novatos na Escola Militar de Realengo, no
Rio de Janeiro, que naquele dia de maio de 1916 conheciam suas primeiras notas,
depois de dois meses de aulas. E as de Pio Borges, primeiro-tenente responsável
pela disciplina Geometria Analítica, eram as mais aguardadas.
O veredicto daquele
professor era considerado pelos alunos o parâmetro para saberem quem seria o
líder da nova turma. Conhecido como “O Justiceiro”, o mestre impunha respeito
por suas avaliações rigorosíssimas, porém imparciais. Cearense, José Pio Borges
de Castro também era reconhecido por ter solucionado o problema das ressacas
marítimas no Rio de Janeiro ao propor um projeto de engenharia para a
construção de um cais cicloidal, ou seja, com formato circular.
Quando se soube que
chegara a hora dos resultados da primeira sabatina de Geometria Analítica,
realizada em abril, os alojamentos da Escola Militar carioca ficaram desertos.
Veteranos e “bichos” mantinham um silêncio sepulcral enquanto Pio Borges
anunciava: “Fulano, nota 0”, “Sicrano, nota 2”, “Beltrano, nota 1”. Parecia que
o professor não conhecia outros valores. Continuava, impassível, recitando seu
rosário de zeros, uns, no máximo dois. Até que, em uníssono, a turma de alunos
solfejou um enorme “Oh!”. Pio Borges acabara de ler uma nota espantosa para os
seus padrões: 9! Todos os olhares se interrogaram, à procura do inquestionável
“primeiro aluno” da turma. Baixinho, franzino, um tanto feio, o autor da
façanha permaneceu sentado, parecendo alheio ao seu feito. Era Luís Carlos
Prestes, aos 18 anos.
Nos meses seguintes, as
notas do aluno novato na temida disciplina sofreram uma ligeira alteração: nos
exames de maio, junho, julho, agosto, setembro e outubro, suas médias em
Geometria Analítica, e também em Cálculo Transcendente, disciplina ministrada pelo mesmo professor, passaram de
9 para 10. O professor “Justiceiro”, no entanto, não se deu por satisfeito.
Talvez para testar até onde iria a excelência do desempenho de Prestes, propôs
em novembro, no último exame do ano, uma questão de difícil resolução. Para
enfrentá-la, era preciso conhecer cálculos que só seriam aprendidos no 3º ano
da Escola, ou seja, no curso especial de Engenharia. O problema era o seguinte:
“Encontrar o volume do sólido formado pela interseção de dois cilindros
circulares retos e de raios iguais que se encontram em ângulo reto”.
Diante da questão, a
maioria dos alunos não teve alternativa a não ser entregar a prova em branco. E
todos ficaram temerosos por Prestes. Perderia ele a sua condição de destaque
justo na última sabatina do ano?
Chega o dia do resultado
da avaliação. O professor Pio Borges, após anunciar uma longa relação de zeros,
registra a esperada nota de Prestes: 10! Só ele havia resolvido a questão
proposta. A vibração tomou conta da Escola Militar e aumentou o apreço por
aquele concludente do 1º ano. A ponto de alguns alunos e professores
reivindicarem, junto a Pio Borges, um ajuste no 9 dado a Prestes por ocasião da
primeira prova de Geometria Analítica. Estaria disposto a mudá-lo para 10?
Alegando razões de consciência, o professor não concordou, e, assim, o melhor
dos “bichos” de 1916 fechou o 1º ano com média 9,97 em Geometria Analítica.
Outras três disciplinas
compunham o currículo do ano inicial. Em Geometria Descritiva, a cargo do
capitão Manuel Bezerra de Gouveia, Prestes obteve nota 10 da primeira à última
prova, sendo aprovado com distinção. Mas, como a história é repleta de pequenas
ironias, havia uma disciplina na qual o brilhante aluno encontrava grande
dificuldade. O futuro comandante e grande estrategista, que entre 1925 e 1927
lideraria uma Coluna revolucionária com mais de 1.500 homens, marchando 25 mil
quilômetros durante dois anos, durante o período na Escola em Realengo era um
fiasco em... Arte Militar!
Por mais que se dedicasse
a essa disciplina – ministrada pelo capitão Rodolfo Vilanova Machado (futuro
prefeito de Niterói) –, as notas de Prestes oscilavam entre 5 e 7, o que fez
com que ele chegasse ao fim do ano com média 5,50. Com a proximidade dos exames
finais, todos os alunos passavam parte das noites em claro estudando
Matemática, Geometria Analítica e Cálculo Transcendente. Os alunos pobres se
organizavam em grupos de seis para comprar os livros adotados nas respectivas
disciplinas. Para conseguirem estudar na época dos exames finais, as noites de
caserna eram divididas em períodos de duas horas a partir das 22 horas, quando
as duplas de alunos se revezavam religiosamente, revisando os chamados “pontos”
abordados em sala de aula. Prestes, no seu horário, preparava-se para o exame
oral em Arte Militar, que seria decisivo para sua classificação final.
Mais uma vez, sua situação
gerou grande expectativa entre os colegas. Após a inquirição, enquanto os
examinadores se reuniam secretamente, a turma toda se concentrou na porta da
sala. Não era apenas a sorte de Prestes que estava em jogo, mas o orgulho da
Escola Militar. Alguns colegas arriscavam palpites. Apareceu então o bedel, que
aproveitava aqueles momentos de maior poder, quando anunciava os resultados dos
exames finais, para tripudiar sobre os alunos. Começava a leitura das notas
alcançadas, economizando palavras, gaguejando, lendo lentamente os resultados.
De uma lista de apenas doze nomes, lia e relia os primeiros, maltratando e
tornando aquela espera interminável. Por fim, chegou ao resultado que todos
esperavam: “Luís Carlos Prestes” (seguido de uma longa pausa), “aprovado com
nota 6,5”. Mais uma vez, ele não repetira o desempenho impressionante das
outras disciplinas, mas o que importava era que estava salvo. Prestes foi
carregado nos ombros dos colegas de turma pelos corredores da Escola Militar,
esboçando um sorriso tímido, mas que se destacava naquele corpo raquítico.
Em defesa do futuro
“Cavaleiro da Esperança”, vale registrar que a ênfase da Escola Militar até
1919 (ano em que ele se formou) era essencialmente acadêmica. Embora a
instituição tivesse sido criada, seis anos antes, para formar oficiais e suprir
os quadros permanentes do corpo de tropa do Exército em suas diferentes Armas
(Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Aviação). Naqueles primeiros
tempos o currículo era mais voltado para Cálculo, Física e Descritiva do que
para o ensino de estratégias militares mais sistemáticas. Essa distorção
começou a mudar justo quando a turma de Prestes estava para deixar a Escola. A
pedido do general Alberto Cardoso de Aguiar, ministro da Guerra do presidente
interino Delfim Moreira (1918-1919), veio ao Brasil uma Missão Militar
Francesa, chefiada pelo general Maurice Gamelin, com o objetivo de aperfeiçoar
a instrução militar no Exército brasileiro.
Luís Carlos Prestes
formou-se na Arma de Engenharia, chegou a trabalhar como engenheiro
ferroviário, mas, em sua longa trajetória, precisaria cada vez menos da
Geometria Analítica, cada vez mais da Arte Militar. O aluno nota 10 foi deixado
de lado. O aluno nota 5 transformou-se em um dos mais notórios revolucionários
da História do Brasil. Vivendo e aprendendo...
*Texto de Márcio de Souza Porto: autor da dissertação Dom Delgado na Igreja de seu tempo (1963-1967). (UFC,
2007).
Saiba Mais - Bibliografia:
AMADO, Jorge. O Cavaleiro
da Esperança. A Vida de Luís Carlos Prestes. Rio de Janeiro: Record, 2002.
CAMARGO, Aspásia, GÓES,
Walder de. (orgs.). Meio século de combate: diálogo com Cordeiro de Farias.
Coleção Brasil Século XX . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
MEIRELLES, Domingos. As
Noites das Grandes Fogueiras. Rio de Janeiro: Record, 2007.
PRESTES, Anita Leocádia. A
Coluna Prestes: uma epopéia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991.
RODRIGUES, J. Luiz Carlos
Prestes – sua passagem pela Escola Militar. Fortaleza: 1927.
Nenhum comentário:
Postar um comentário